por Marcio de Almeida Bueno
‘Certo, certo, certo’ – ele disse, enquanto carregava o revólver. Foi até a janela e mirou na multidão, lá embaixo. Atirou tipo bingo. Alguém caiu no chão. ‘Um a menos para comer a minha mulher’. Ela, encolhida num canto da sala, começou a chorar e gritar:
-Pare!! Isso não vai resolver o nosso problema!!
-Calaboca sua cadela! – respondeu, enquanto esmurrava a mulher. Só parou quando ela parecia desmaiada. Arrastou-a apartamento a fora, dobrando à direita no corredor e depois à esquerda. Colocou a mulher na salinha onde ficava o lixo. Na verdade era uma escada com porta corta-fogo, mas acabara virando lixeira. ‘Espero que o zelador não resolva te foder, se vier buscar o lixo e tu ainda estiver desmaiada’. Desceu as escadas até o térreo e cumprimentou o zelador, que tinha hálito de cárie podre. O aluguel podia ser barato, mas o hálito parecia vir do ânus do cara. Talvez viesse.
Já na rua, viu o aglomerado de pessoas ao redor do recém-morto. Alguém chamara a polícia. Chegou perto, e, distraído, perguntou a um dos muitos curiosos:
-Que que deu?
-Mataro um home. (...) Parece que foi um preto, ‘ssaltô ele, matô ele e fugiu correno. Esse centro tá cada veiz peior. A gente que trabalha num pode nem saí que morre. Esses dia
Largou o outro no meio da frase e saiu em passo acelerado. Imerso em pensamentos. ‘Preciso fazer algo. Grana. Me mexer. Já resolvi o problema com aquela vaca. Puta. Nada que umas balas de revólver não possam resolver. (...) Puta merda, aquele flagra que eu dei nela tá me excitado. Aquele coitado metendo nela em cima do sofá, quando eu abri a porta. Aí eu meti cinco balas nele. Agora ele tá guardado no banheiro. Grana. Preciso me mexer.’
Já estava há umas dez quadras do apartamento quando pensou que aquela movimentação toda em frente ao seu prédio poderia facilitar a desova do corpo do ex-Ricardão. Voltou. A aglomeração estava maior, viera uma ambulância, ou rabecão do IML, não podia ver direito. Entrou no seu prédio. O zelador estava na porta, espiando o tumulto.
-Que que é o quê, lá? – perguntou o zelador, sem olhar para ele.
-Um desses camelôs que fazem truques, e tal. Acho que é a Cobra Catarina.
Enquanto subia as escadas pensava na resposta que recém havia dado. Sempre fora assim durante a vida inteira. Ficava contente quando conseguia pensar rápido e dar uma resposta infame, com a cara mais séria da mundo.
Chegou no apartemento. Amulher esperava-o sentada no sofá, fumando. O rosto inchado e com hematomas. Tinha feito um bom serviço.
-A gente tem que conversar. – ela disse, com o mesmo olhar do dia do casamento.
(...)
-O que que a gente via fazer com a porra desse corpo? – ele perguntou, já sentado e de chinelos.
-Calma. – ela respondeu, cúmplice – O carro dele está lá na garagem. As chaves estão aqui.
Mostrou as chaves. Ele vicou olhando para as chaves. Sempre achara um molho de chaves algo como um rosto, diferente, pessoal, intransferível e sem outro igual. As chaves dos outros eram sempre diferentes, argolas, chaveirinho de sei-lá-que-firma.
-Ele veio de carro? Porra.
(...)
Carregaram o corpo até a garagem e colocaram no porta-malas. Embarcaram no veículo e saíram, sem direção exata.
-E daí, pr’onde vamos? – ele perguntou, automaticamente. Trabalhara como motorista de táxi por 7 anos.
-Acho melhor esquecer o carro em algum lugar, com o corpo. A gente podia largar num sítio, colocar uma lona em cima e dizer byebye, so long, farewell – ela disse, cantando sorrindo.
‘...ou jogar o carro na valeta e tocar fogo’ – ele respondeu mentalmente, enquanto fuçava no painel do carro. Achara uma fita K7. Metera no tape-deck. Blues. Um preto cantava ‘ma woman’s ballin’nother man... ‘n ‘s not da first time, baby... dis ma blues o’ number ten’.
(...)
Voltaram de ônibus desse sítio nos arredores da cidade.
-Tu tá legal? – ele perguntou, com ternura.
-A-hã.
(...)
Já em casa, conversavam deitados na cama, luz apagada.
-E aquele cara que tu matou, na rua?- ela perguntou, um pouco nervosa.
-Foda-se. Como vão saber que fui eu? Tem milhares de janelas circulando esse claçadão. Devia ser um pobre-coitado que estava merecendo castigo, ou algo assim. Posso Ter feito justiça. Uma bondade. Acho que vou começar a fazer isso mais freqüentemente – comentou irônico.
-Como será que era a vida dele? Seus amores,
-(Interrompendo) Meio brocha. Pau pequeno. Começando a ficar careca. Bigode. Separou-se da mulher e foi morar com uma tia. Tinha vontade de comer a tia. Ficava num boteco até tarde. Roncava. Trabalhava de sei-lá-o-quê. (...) Legal aquela fitinha de blues. Guardei ela comigo, tipo souvenir.
Nesse instante começaram a ouvir ruídos abafados vindo do apto ao lado. Os ruídos não cessavam. Ele se interessou, levantou e foi escutar na parede com um copo. A mulher, sonolenta, dizia para ele não dar bola e ir dormir. Mas ele ficou ouvindo. A conversa era estranha. Gemidos. Resolveu espiar. Usou um cabo de vassoura com um espelho colocado estrategicamente na ponta.
Conseguia ver o casal vizinho transando. Mas... sexo bizarro. Trajes, objetos. A mulher penetrava o marido com um pênis de plástico preto colocado na cintura. Depois, restos de comida usados de maneira inimaginável. Ele se sentiu até nauseado, e parou de espiar.
Olhou para a própria mulher na cama, já dormindo. Lembrou-se do flagra naquela tarde. Ficou excitado. De repente, lembrou-se do revólver. Não sabia dizer onde havia deixado. No carro? Pensou em acordar a mulher, mas raciocinou que ela podia ter pego a arma, para matá-lo. Lembrou-se do quartinho do lixo, no corredor. Foi até lá e achou o revólver num canto. O lixo não havia sido recolhido. Resolveu espiar o lixo dos vizinhos que transavam. Podia achar algum apetrecho ou umas revistinhas. Abriu o saco e achou várias embalagens de colírio. Será que eles são uns hippies velhos? ‘Maconha só me dá sono’ – pensou. Voltou ao apartamento, escondeu a arma dentro da caixa-d’água do vaso sanitário e foi deitar, imerso em pensamentos, até cair no sono.
Na noite seguinte, foi novamente espiar as atividades dos vizinhos. A esposa estava vestida de noiva e marido de noivo, com fraque e tudo. Estavam representando alguma nova fantasia. ‘Enfim sós: nossa lua-de-mel’, ele disse. ‘Oh, querido’, ela respondeu, apaixonada. Eis que o ‘noivo’ tira rapidamente seu traje e exibe seu corpo nu. Um piercing em cada mamilo, unidos por uma corrente. Uma argola colocada no prepúcio, impedindo a saída da glande. Grilhões por todo o corpo. Agulhas colocadas aleatoriamente, paralelas ao corpo, de maneira a não aparecerem por baixo da roupa.
-O que é isso?! – gritou a ‘noiva’, maliciosamente ingênua.
-Hardcore, baby. – respondeu o marido, arrancando as roupas dela e iniciando novamente as atividades.
Ele continuava espiando o casal. Parou por um momento e foi buscar a máquina fotográfica. Debruçando-se para fora da janela, conseguiu bater várias fotos, arriscando-se a cair lá embaixo. Revelou as fotos no seu mini-estúdio. Estivera trabalhando de fotógrafo policial para um jornal sensacionalista. Saiu do apto levando as fotos, bateu na porta do vizinho. O vizinho demorou bastante mas acabou atendendo a porta. Estava encharcado de suor, com um pijama seco que deve ter sido colocado às pressas.
-Boa noite.
-Boa noite. – respondeu o vizinho
-Eu trabalho para o jornal ____________ e vim pedir para o senhor escolher qual destas fotos é a melhor para a capa da edição de amanhã. – falou seco, mostrando as fotos. O vizinho olhou apavorado e puxou-o para dentro.
-Como é que tu conseguiu isso?! – perguntou o vizinho, trêmulo.
-As paredes têm ouvidos e as janelas têm olhos. – respondeu firme. Notou que o vizinho tinha vermelhidão e inchaço nos olhos. Fumou um baseado, no mínimo. Apareceu a esposa, seminua, para ver o que estava acontecendo. Ela também tinha os olhos estranhos. Também devia fazer parte da esquadrilha da fumaça, hê-hê. O vizinho mostrou as fotos para a esposa, dizendo:
-Acho que ele quer algo para não mandar publicar essas fotos.
A esposa do vizinho olhou ele de cima a baixo, sensualmente, e disse:
-Bom, tu não gostaria de participar das nossas sessões... como pagamento?
-Desculpe, dona – disse ele, cortando – Sexo para mim é o mesmo que os meus pais faziam, só que mais rápido. Quero grana.
-Grana. – ela repetiu, como que para ter certeza.
Os vizinhos se entreolharam, até que o marido falou:
-A gente não tem grana. Pelo menos não no momento. Mas podemos pagar com uma coisa mais valiosa.
Foi até uma gaveta e trouxe um pedacinho de papel plastificado e um colírio. No meio do papel plastificado havia um pontinho lilás minúsculo, como uma cabeça de alfinete.
-Me desculpe, mas não vou tomar ácido. – recusou, irritado – a única vez que tomei foi na praia e acordei dois dias depois pelado dentro de uma viatura.
-Não, esta é uma droga nova – disse calmamente o vizinho. Parecia um crente falando de Jesus – Chama-se Little Wing, em homenagem ao Jimi hendrix.
-Nunca ouvi.
-Tu deve colocar o ponto lilás na mucosa do olho, deixando dissolver. Esta dose faz parte da primeira e única remessa existente. Por enquanto. O efeito colateral é uma irritação nos olhos. Use o colírios.
-E eu pensando que vocês eram uns maconheiros tarados de merda.
Ele saiu da casa dos vizinhos, carregando somente o ‘Little Wing’. ‘Que idiotas’, pensou, ‘é claro que vou publicar as fotos, tenho mais cópias comigo.’
Entrou no seu apartamento. A mulher dormia. Aquela vaca. Tirou a roupa de sentou no sofá, no escuro, escutando os gemidos dos vizinhos do lado. Colocou o ponto lilás no olho.
(...)
Na manhã do dia seguinte a mulher acordou e encontrou ele sentado no sofá, olhos vidrados. Ela perguntou, entre curiosa e sonolenta:
-O que é que tu fez aí a noite inteira? Não veio dormir?
-"Eu vi Deus" – ele respondeu, como se estivesse lendo ou recitando as palavras. Não piscou nem olhou para ela – "Ele tinha acabado de se suicidar, com um tiro na cabeça. Não sei o que o levou a fazer isso, mas acho que não era grande coisa. Nada que uma bala de revólver não pudesse resolver."
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