20 de setembro de 2014

Cavalgada do Mar: a farra-do-boi gaúcha

Na passagem do 20 de setembro, reproduzo matéria de minha autoria que fiz em 2010 por solicitação do jornal Folha do Meio Ambiente, editado em Brasília/DF com distribuição nacional. Uma versão digital está em http://www.folhadomeio.com.br/publix/fma/folha/2010/04/cavalga209.html.




Cavalgada do Mar: a farra-do-boi gaúcha

por Marcio de Almeida Bueno

Cavalgada do Mar assemelha-se a tradições culturais moralmente condenáveis, como farra do boi, rodeios e touradas

No início do ano, o litoral do Rio Grande do Sul sediou a 26ª Cavalgada do Mar, reunindo três mil cavalarianos para 240 quilômetros pelas praias. Já nos primeiros dias, a imprensa noticiava a morte de dois cavalos, mas extra-oficialmente corria a informação de que seis a oito cavalos tinham morrido de stress e exaustão. Uma dúzia havia passado mal. Com isso, dezenas de entidades de proteção e grupos pró-libertação animal lançaram a 'Carta Aberta Aos Gaúchos de Bom Senso', que rodou a Internet e chamou a atenção para o caso. O documento pedia o fim da Cavalgada do Mar e denunciava a exploração do cavalo, apesar de ser 'o melhor amigo do gaúcho'.

E ssas cavalgadas fazem parte da indústria cultural pilchada, que se reproduz pela mídia e calendário de eventos celebratórios. É mais um do barroquismo cívico, parte de uma identidade que se alimenta da exibição", comenta o historiador e professor da Universidade de Passo Fundo, Tau Golin. Em seu livro 'Identidades', Golin classifica a tradição gaúcha como uma cultura da violência. "Nesta poética, existem inúmeras músicas que o índice de hombridade é medido pela capacidade de violência contra outros homens e os animais, no 'poder' de sujeitar cavalos", aponta.

Para a bióloga Ellen Augusta Valer de Freitas, "as fezes equinas durante a cavalgada, estimadas em 500 toneladas, causam desequilíbrio ambiental e poluição, pois não são recolhidas prontamente". Ellen explica que o pisoteio dos cascos ferrados de três mil cavalos funciona como milhares de enxadas na areia, esmagando a macro e microfauna, coisa que o pé dos banhistas não provoca. Se nos chocamos com a morte em massa de animais maiores, por que desconsiderar mariscos, siris e tatuíras?

Crítica na mídia

Alguns dos formadores de opinião gaúchos começaram levantar críticas, ao que antes parecia ser unanimidade. O colunista Paulo Sant'Ana, de Zero Hora, em 'A Cavalgada da Gordura', falou dos cavalos gordos e despreparados para uma jornada extenuante, montados por quem também estava acima do peso. Juremir Machado da Silva, no centenário Correio do Povo, publicou 'Tempo de matar cavalos', texto lido ao megafone durante o protesto em 26 de janeiro, na frente da sede do Governo Estadual e Assembléia Legislativa. O ato juntou ativistas e protetores, com ampla cobertura dos meios de comunicação. Para a jornalista Helena Dutra, do grupo Vanguarda Abolicionista, "a Cavalgada do Mar assemelha-se a tradições culturais moralmente condenáveis, como farra-do-boi, rodeios e touradas, com primitivismo, crueldade e indiferença para com o sofrimento. O fato de ainda se perpetuarem no século 21 é um atestado da nossa falência ética".

Comer, beber e dar risada

Vilmar Romera: "se morrerem 15 cavalos, não tenho nada com isso. Esse é um problema do dono do cavalo. É como mulher. Se tu não tratares bem, vais levar guampa".

Em entrevista dada a Zero Hora, o folclorista Paixão Côrtes, nome maior do tradicionalismo gaúcho, dizia não ver razão na Cavalgada do Mar. "Não há pesquisa nem serve para questionar os problemas do RS. É comer, beber e dar risada", decretou. Naqueles dias, o presidente da Fundação Cavalgada do Mar, Vilmar Romera, defendia o evento no mesmo veículo, com declarações desastradas - "se morrerem 15 cavalos, não tenho nada com isso. Esse é um problema do dono do cavalo. É como mulher. Se tu não tratares bem, vais levar guampa". O lema deste ano era 'Mulheres a Cavalo pelo Rio Grande'.

Mais de cem mil pessoas já assinaram o 'Manifesto contra o Tradicionalismo' - gauchismos. blogspot.com, e nas enquetes da mídia, a maioria do público pediu o fim da Cavalgada do Mar. A advogada da ONG Chicote Nunca Mais, Márcia Suarez, presente em dois debates sobre o tema, quer que sejam identificadas os donos dos animais que foram a óbito durante os dias de cavalgada. "Vou utilizar o que dispõe hoje a lei para que em 2011 os animais estejam em melhor condição. Um veterinário para cada 50 eqüinos - e não apenas um para três mil, como é atualmente", diz. O Ministério Público gaúcho abriu inquérito para apurar as denúncias.

A psicóloga Eliane Carmanim Lima, mestre em Sociologia da Violência e Criminalidade, esclarece que "o século XXI está conhecendo a cultura que substituirá esta que cavalga cavalos à exaustão em nome da tradição. Esta que vemos nascer é a que se reúne em praça pública para pedir justiça". Para Eliane, uma mudança está em curso. "Se hoje conseguimos enxergar o crime de maus tratos a animais, arbitrado desde 1934, é porque nosso olhar mudou. Atinge a alimentação, a educação, a economia e mesmo hábitos que muitos pensavam estarem resguardados pela 'tradição'. A mudança segue a galope, cada vez mais célere e indomável. Não poderá ser freada ou domada como têm sido os animais", compara.

Para Luiz Martins da Silva, professor de Ética da Universidade de Brasília, é necessário levar às novas gerações uma compreensão ainda mais elevada acerca do mundo, uma ética da compaixão. "Se o ser humano se considera superior, não deve esperar que os supostos 'brutos' se elevem até si, mas que no enlevo da compreensão possa oferecer uma simetria para com eles, senão as pessoas matarão tudo o que for vivo e que não considerarem que é simétrico a si. Inclusive humanos", pondera.