14 de janeiro de 2015

CONTO: Grãozinhos de milho

por Marcio de Almeida Bueno

Eu andava numa época especialmente ruim, tinha tentado fazer uma exposição com as minhas obras mas só gastei meu último cartão telefônico. Não arrumava emprego porque era muito feio (ou as minhas roupas é que são fedidas?), sobrevivia vendendo nos sebos algumas raridades da minha coleção de vinil. Sabe quanto esses lugares pagam por um "Obscured By Clouds" original do Pink Floyd? Um café e um pão de queijo mal requentado, eu sempre peço para a balconista NÃO esquentar no microondas. -Qué qu'esquente? -Não, não precisa, eu... Ela JÁ colocou no microondas e apertou o "60 segundos", irreversível como a venda do meu Pink Floyd. Ela só perguntou por, digamos, "educação". A minha resposta seria óbvia, claro, quem comeria um pão de queijo não aquecido? -Não precisa esquentar o... -Não, mas tá frio - ela responde enquanto olha o movimento na rua. Eu já notei que algumas pessoas que trabalham atrás de um balcão têm o costume de falar olhando por cima do ombro do freguês, como se houvesse algo realmente interessante acontecendo na calçada em frente. Aquela espelunca. Eu havia rodado todo o centro para achar o lugar que tivesse a combinação café + pão de queijo mais barata. Os centavos faziam diferença, meu Pink Floyd nem valera tanta coisa. -Olha, eu quero dizer que fica frio mesmo após esses 60 segundos, dentro continua gelado e... -49! 49!... 50! - ela já estava chamando a ficha seguinte. Minha última frase ficou planando em câmera lenta. Se eu tivesse dito "foda-se sua puta, volte para a periferia" ela não teria nem titubeado na hora de chamar a ficha 49. E a 50. Pensei na exposição que não conseguia organizar. Minhas obras têm..., quer dizer, EU chamo de obra, mas muitos chamam de entulho. Reconheço que muita coisa é entulho ou qualquer coisa abaixo disso, feio e inútil. Fico me culpando e achando que o que faço não tem valor nenhum, algumas coisas até mesmo cheiram mal. Eu adquiri o costume de passar nas lixeiras e recolher algum objeto mais ou menos inteiro, levo pra casa e faço alguma coisa em cima. Abajures, persianas, azulejos, televisão sem o tubo, tudo quebrado mas mais ou menos inteiro, nada desfigurado como objeto. Até uma privada já encontrei no lixo. Justamente essa privada me deu mais problemas que qualquer outra coisa. Carreguei até em casa aquele trambolho, estava intacto, eu passava e as pessoas olhavam, os velhos olhavam, as crianças de colo olhavam, até os cachorros olhavam, dizendo "alguém carregando um vaso na rua, he he". Eu fazia cara de ocupado, como se estivesse sendo pago para carregar aquele vaso, tipo um pedreiro trabalhando num banheiro, o cara tá sendo pago pra fazer aquilo, eu fazia cara de quem ESTAVA sendo pago. Mas fazia muito tempo que não fazia algo pelo qual alguém me pagasse, e nem recebia por nada que fizesse. Estava numa gripe daquelas, ou melhor, a gripe tinha passado mas eu ainda estava todo entupido, passava dias assoando o nariz, saía um troço cinzento, sempre ouvira dizer que quando estava nessa cor já estava tudo curado. Pelo menos em termos de catarro eu fazia a coisa certa. E nem precisava me esforçar muito. Daí que eu carregava aquele vaso branco, fazendo cara de compenetrado e me segurando para não parar e assoar o nariz. Cheguei em casa e coloquei o troço bem no meio da sala, ou no meio do apartamento, o que dá no mesmo. Fiquei longos instantes pensando o que fazer com aquilo, enquanto recuperava o fôlego. Tipo o cara que dá uma corridinha no parque e aí para pra tomar uma água e fica de olho arregalado, enquanto a respiração volta ao normal. Ninguém faz um esforço e depois já faz outra coisa logo em seguida, o cara sempre fica meio adrenalinado e não sabe o que fazer direito, fica olhando para todos os lados e tal. Eu fiquei olhando para o vaso. Pensei em colocar uma seta apontando para o buraco, depois pensei em pintar de preto e escrever "Fusca". Acho que ninguém entenderia. Decidi serrar na horizontal e colocar algo no meio, como se fosse um sanduíche. Claro que não consegui serrar porque eu não tinha nenhuma ferramenta decente, nem tinha idéia de como serrar uma peça feita de louça. Acabei quebrando, apenas, vi o sifão interno, cheio de... MERDA! Putz! O troço estava entupido, uma folha de jornal estava enfiada dentro e não deixava que a merda passasse, o dono do vaso devia ter se limpado com o jornal e depois colocou dentro e tentou puxar a descarga e o troço entupiu e ele teve que jogar fora e tal, e eu não senti cheiro nenhum porque estava com a droga do nariz entupido! Talvez fosse por isso que todo mundo me olhara na rua. Até os cachorros. Aquele cocô escuro, meio velho e dissolvido, caiu bem no meio da minha sala, eu VIA o cheiro saindo dele. Quem quer que fosse o responsável havia feito um belo serviço, era um senhor cocô. Acho que minha capacidade artística estava mais voltada a perceber beleza plástica e design no que fosse horrendo, seja uma bosta, um vômito, um pé podre de mendigo, a baba e a pele sebosa de um retardado mental. E isso me perseguia, certamente eu preferia me satisfazer contemplando um quadro de paisagem, um carro novo ou um par de olhos do que uma bosta anônima. No meio do meu apartamento. E a idéia de ter que me livrar daquilo, ter que limpar o chão etc dava uma puta preguiça que me fazia contemplar mais ainda a coisa, seus contornos e grãozinhos de milho. Ainda estou para ver uma bosta de calçada que não tenha alguns grãozinhos de milho. Assim como nunca vi um modess limpo jogado na rua (poderia ter caído da sacola de compras, sei lá)‚ sempre é usado, com as colorações e tonalidades vermelhas mais cremosas possíveis, me admira que alguém jogue fora de forma tão pública uma coisa tão íntima. "-Eh, osvaldo, pára o carro um pouco" "O quê?" "Eu disse pare o carro" "Parar o carro pra quê, mulher?" "Eu tenho que... ir no banheiro" "Ah, e tem banheiro na calçada agora?" "Eu só quero trocar o absorvente" "Certo, no meio da rua? Não é hora de parar nessa parte da cidade" "Tá, reduz que eu vou só vou jogar fora" "Pronto, reduzi, vai" "Não, tem um velho olhando" "Pronto, passamos, aqui tá... CREDO, MULHER! QUE NOJO!" "..." "Meu Deus! Eu nunca pensei que..." "Ah, na hora de enfiar não é nojento né? "É meio nojento sim" "Como é que é?" "..." "Repete seu bosta!" "É meio nojento, o que posso fazer?" "Eh, quando..." "Parece uma boca de polvo, melada e malcheirosa" "Ah eu sou malcheirosa então?" "Claro" "Tá bom, seu merda, sou a Rainha das Malcheirosas" "Vem cá, você me pede pra parar o carro pra trocar o modess na rua e ainda se acha a Sophia Loren dos cheiros?" "Quem?" "Sophia Loren, foi uma..." "Osvaldo, quem é ela? OSVALDO?" No meio dos meus pensamentos toca a campainha. As pessoas sempre aparecem nos piores momentos. Já atendi a porta dormindo, doente, drogado, no meio de um ataque de pânico, no meio de uma punheta, de uma bela refeição, no meio de uma boa cagada. Era alguém que eu não conhecia. Era uma linda mocinha sorridente rica e cheirosa, falava com o sorriso. Eu já achei que era pedido de donativos. -Sim - eu só abri um pouco da porta. -Olá, você é o _______ né? -É, sou. -Eu vi o teu site na Internet aí peguei o endereço e resolvi dar uma passada. Nem avisei mas é que eu precisava falar logo sobre uma... -Realmente não estou interessado, ando ocupado e não tenho tempo nenhum - cortei sua frase. Maldito site, um chegado fez pra mim, bateu umas fotos dumas peças minhas e meteu num servidor gratuito, nem sei o endereço de cor. Nem quero saber. -É rápidinho, dá pra entrar? - perguntou a senhorita Sorriso. -Eu... tava trabalhando numa obra, você chegou bem no meio. -Prometo que não mexo em nada - ela já foi entrando, e deu de cara com aquele cagalhão fedorento. A expressão de horror e nojo que ela fez eu jamais vou esquecer. -O Q-QUE É ISSO? -Eu estou fazendo umas... misturas orgânicas - foi o que consegui pensar na hora. Uma boa frase. Ela até tentou começar a falar, mas não tirava o olho da merda. Estava quase hipnotizada, não conseguia parar de olhar para uma coisa tão horrível, tão fedida, provavelmente ela nunca vira uma merda alheia, em seu mundinho belo e perfumado. Talvez nem olhasse o próprio cocozinho, na louça cara de seu banheiro, antes de apertar o botão da descarga. Talvez nem olhasse o papel higiênico usado com aroma de rosas após passá-lo no bumbum branquinho. Nem deixava o noivo olhar para o bumbum branquinho - essas mulheres SEMPRE têm noivo. Nunca vira uma bosta pastosa, fresquinha, brilhante, era virgem nessa visão do inferno. Eu era o carrasco dela, era quem fazia uma bonequinha de luxo VER uma merda, e sentir o cheiro. Talvez aquele fedor até se impregnasse em suas roupas. Finalmente alguém compartilhava comigo, à força, a visão de uma beleza exótica, a beleza plástica e o design e detalhes lustrosos e grãozinhos de milho de um cagalhão no meio da minha sala. Pelo menos em termos de arte eu fazia a coisa certa. E nem precisava me esforçar muito.

Um comentário:

  1. Ahhhh me lembro deste conto, um ensaio sobre o saló nosso de cada dia. Um grande abraço ao irmão gggallin(G.:.T.:.).:.

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