por Marcio de Almeida Bueno
Na verdade, o abate é tão somente uma das faces da escravidão animal – de forma diferente, podemos citar os cavalos de carroça, os coelhos em laboratórios de testes de produtos, o touro na tourada, o macaco no zoológico, a lagosta viva no restaurante chique, os cachorros nas fazendas chinesas, a lista é quase infinita. Quer dizer, há o abate final após uma vida de não-liberdade, e há a vida inteira de tortura, sem a bênção da morte como fim do terror. Se bem que, por exemplo, os cavalinhos de carroça são estourados a vida toda, e na finaleta alguns acabam no abatedouro, diferente de seus iguais que capotaram no asfalto e espumaram pela boca até a chegada do toque piedoso da senhora Morte.
Então o cidadão médio nivela a coisa como ‘não comem carne, né?’, pelo máximo de excentricidade que consegue vislumbrar – um abstêmio, como já ouvi certa vez. Pensar naquilo que não lhe traz um ganho imediato, e sempre para si, está fora de cogitação, pois desde o parar de fumar até a reza aos domingos, é sempre para benefício pessoal, em última análise.
Mas há uma realidade por trás do glamour aparente, desta opção não-escolhida que a maioria segue entoando tal como não escolheu o time de futebol para o qual torce, mesmo que grite e pule a cada jogo assistido. E a grande massa pensa, por ignorância ou remorso, que tudo é como no sítio da Vovó Donalda, com animais felizes e de estimação. Uma rápida análise das embalagens dos produtos em supermercado nos faz pensar que os animais voluntariamente dão sua vida pela carne servida aos humanos, a galinha cordialmente se esforça para dar os ovos aos humanos, o porco aparece com chapéuzinho de cozinheiro, etc. Sempre para os humanos, jamais seus corpos-ingredientes são gentilmente cedidos às feras, aos predadores naturais – os tão citados carnívoros! – ou a quem, vá lá, esteja moribundo e morrendo de fome. Sempre ao dono-patrão-proprietário-’tutor’-patriarca-humano.
Aquela visão bucólica da pecuária, onde sempre parece que o gado está de fones de ouvido, praticamente meditando.
E os processos industriais ou da agricultura familiar não entram nesse cálculo, porque para quem morre ou dá seus anos de vida em troca de alimento diário, tanto faz se o algoz é de uma família quatrocentona latifundiária oligárquica ou é pobre, sem-terra. Há quem fique chocado ao ver uma castração a frio – ‘tradição’ cívica em regiões do RS – que ocorre sempre longe dos flashes da mídia comprometida em lamber as botas do patronato rural. Mas quem faz a castração a faca, faz de forma automática, com cigarro no canto da boca, já esquentando o fogareiro rústico para apreciar as bolas de touro, “que se abrem como couve-flor, quando está no ponto”, como já escutei.
Quem martela o gongo do antiespecismo pretende descolar as pálpebras da pessoa ao lado, largar uma bolinha de ping-pong nas ideias, com vistas não a um ganho seu, mas ao que percebe como justo. Talvez isso é o que provoque tantas reações contrárias e narizes torcidos, em um mundo onde quem não leva algum, está por fora.
E qualquer informação desagradável, imagem chocante, nada mais é que o mundo real, o expediente diário de quem decide a utilização deste ou daquele animal para seu lucro, ou para o lucro de seu patrão. Entretanto, a imagem desagradável do macaco no laboratório é fruto de quem acha que os animais estão aí para nos servir, a imagem desgradável do porco pendurado em ganchos é fruto de quem acha que os animais estão aí para nos servir de alimento, ‘e todo esforço é necessário, afinal de contas’. o antiespecismo aponta essa injustiça e propõe uma vida fora do que a ‘tradição’ manda.
Não se separa a atitude em gavetinhas etiquetadas, compartimentando as pessoas conforme os conceitos até então aprendidos – e que diariamente se provam errados. Não comer carne é ‘um pequeno passo para o homem’ etc. Mas é uma ação para abrir as demais portas, que como as pálpebras estavam seladas pelo bom-mocismo das ideias, pelo medo de parecer idiota.
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