Então se convencionou que este animalzinho aqui, mas este aqui, ó, vai emocionar a todos nós com sua fofura fotogênica. Vamos todos emoldurar sua foto, compartilhar nas redes sociais, e ensinar às crianças o valor do amor aos animais – apontando-se para a imagem deste animalzinho aqui, ó. Para ficar bem claro. Haverá quem diga ‘parece gente, né?’, e ‘até faz parte da família’. Apontando para o animalzinho em questão, fofo, fotogênico e, vá lá, com melhor sorte que outros. Está valendo o quanto custou, pensa o pai que passou o cartão na hora da compra.
Claro que vejo meus vizinhos arrastando seus animaizinhos-fofos-da-família-que-parecem-gente-né pela calçada enquanto esses ainda estão tentando fazer cocô. “Vamos, Condessa!”, bradou esses dias uma vizinha sessentona, enquanto puxava seu animalzinho favorito, que ousava – vejam só o disparate! – dar uma cheirada protocolar maior que o instante suportado por sua ‘dona’. Tudo isso em um passeio matinal na calçada, com aquela paradinha obrigatória em cada gramado, árvore ou canto carimbado por si ou similares, em rondas anteriores. O amor à Condessa convertera-se em uma coleira-peiteira que permitia sua, digamos, proprietária, dar os puxões necessários para que a distração não durasse mais que o instante permitido. É necessário apurar, para chegar logo em casa e ligar a televisão ou postar imagens bonitas no ‘cara-livro’.
Não preciso dizer que, ao me ver vindo pelo mesmo passeio público, o puxão na Condessa foi especialmente vigoroso. Nunca entendi bem o porquê dessa tutela reativa que inclui um safanão bem dado cada vez que uma outra pessoa – estranha, talvez, como presumo que eu seja – se aproxime ou cruze pela mesma calçada. Alguns chegam a levantar o animalzinho pela coleira mesmo, embora eu lembre de só ter brincado de ‘forca’ com caneta e papel, até hoje.
Mas é como aquelas mães que estão sempre ralhando – …ah, esperei alguns anos para poder usar este verbo… – com o filho pequeno. ‘Para, João Felipe’, ‘larga isso, Cauã’, ‘já falei para não mexer nisso, Maria Cristina, tu vai ver quando o teu pai voltar’. A impaciência rivotrílica é bastante similar: talvez apenas a sacudida extra seja guardada para a privacidade e inviolabilidade do lar, para não ficar chato na frente do porteiro ou dar dor-de-cabeça com o Conselho Tutelar. Enfim.
O animalzinho que ora observamos, sortudo até, no comparativo da tabela, preenche como massa de parede aqueles visíveis buracos da meia-idade, da síndrome do ninho vazio, da viuvez, da falta de assunto entre cônjuges, da aporrinhação familiar “e da solidão das pessoas / dessas capitais”, como canta Belchior. Não todos, mas vejo o que vejo, e anoto aqui para fins de registro no caderno da vida. Ponto.
Um dia é dia de apanhar de jornal enrolado, outro é de ficar no Sol, outro é de ficar alguns dias no box do banheiro, ou esperando o resto da família voltar da praia, dias depois, outro dia é de espera, olhando pela janela. E às vezes a doença que chega no virar do calendário, a velhice, ou ambas de mãos dadas, caminhando com passos inicialmente miúdos, mudam a rota do animalzinho-fofo e lhe proporcionam – se não o apoio, o tratamento e o acolhimento misericordioso na hora do aperto final – a condição de presente para a faxineira, junto com umas roupas ‘que não servem mais em ninguém. Pode levar, Dona Fulana’.
Uma vida batida no martelo dos instantes, na gangorra do humor, na concessão de espaço, de comida, de cama quente. Ou castigo.
Publicado originalmente na ANDA.
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